segunda-feira, 28 de abril de 2008

Um breve conto...

O desabafo do mercantilista

Barulho agradável de chuva, e quando me acordo entendo que o barco está parado. Agora em terra, o que devo fazer é carregar todas as coisas que têm valor e vender pelo que não vale. Levantar, estender diante de mim mesmo, e com força carregar, falar, caminhar e em resumo, trabalhar. Mas ainda deitado num isolado quadrado do navio (junto com dois ratos que teimavam em me perseguir) não conseguia levantar do toco de madeira com lençol que usei como cama durante toda a viagem. Não que fosse pelo conforto da minha cama, nem pelo agradável do ambiente do meu próprio lugar no barco (eu era um dos únicos que tinha um 'quarto' em separado), pois os dois ratos voltavam para incomodar. Tampouco pelo cansaço, pois apesar que o barco tenha balançado mais que o comum esta noite, o ópio de ontem garantiu-me um bom sono. Era aquela própria chuva, a mais singela, que me congelava, não pelo frio, mas pela sua forte capacidade nostálgica.

Todo aquele marasmo não era esperado. Deveríamos chegar com sol, ver gente que vive em cima da terra, fazer negócios e ganhar abraços, apertos de mão, assinar contratos. Mas a chuva era um breve hiato no tempo. E são esses breves hiatos no tempo que me trazem a saudade, enclausurada em mim mesmo, de todos os hiatos que o tempo já teve.

Um hiato em mim que agora se desdobra em lembranças, e nem faz mais diferença aonde estou. Uma tristeza instantânea me arrebata e me pergunta como eu estou. Inevitável remontar o passado.

Lembrei de alguns pontos da minha infância, e de toda a saudade que sentia de poder pular sem medo algum de me quebrar, e me sentir tão livre mesmo sem nada a poder fazer. Mas como as coisas se transformam, o próprio sentimento puro dessa infância já morreu, sobram apenas resquícios na memória, e pra poderem sobreviver, eu preciso reconstruir. Lá vai a imaginação, e eu tentando pensar quem eu era, pra me sentir no que sou. Fatos não são tão fatos assim, e me recordo que o importante não tem origem nem fim.

Às vezes parece que lembrar é se perder no tempo, mas o que me remete ao tempo é justamente o que não se pode explicar, nem dizer. Não foi numa noite estrelada ou num dia de sol que o que me fere aconteceu. É a essência que precede a existência, e que num momento cria um vão, que desliga as duas, como se ser fosse se contemplar no que não-é em si, mas no que há em mim. Desde criança, lembro de já ter algo montado na mente, uma imagem que não se aparecia nem se escondia, que eu não podia ver mas sabia o que era. Por vezes, durante mesmo uma respiração, sentia sua falta, me perguntava se existia aquela essência que se escondia em mim. Não era eu. E isso eu sempre sabia, não era eu...

Na hora que a gente foge de tudo isso, e atinge essa conexão que há em si com esse mistério de uma brisa sem fim, ao mesmo tempo se exige a desconexão do que sou e do que me rodeia. As coisas mais abstratas mesmo, acabam sendo só aparência, a aparência sequer tem um lugar de realeza, e o que é real é que não se vê, não se toca, não se explica, não se entende, e que ainda tudo, o que eu não sou, mas sei que tenho.

Lutava sempre na adolescência pra tentar me auto-domar, um dono de si mesmo. Olhava em volta todas as pessoas se construindo a partir de obrigações sociais, fazendo justamente como a explicação que teriam que dar depois. Um azar na família me deixava sozinho e ao mesmo tempo, querendo fugir de qualquer companhia. A peste irlandesa matou papai e mamãe, e quando jovem só havia meu tio, que de tão bêbado, já mendigava e exigia de mim. Mas nunca pensei em trocar minha humanidade por uma profissão, nem mesmo de me transformar em um ator dos fingidos sorrisos da rua, dos abraços que se dão pela gratidão de esperar que num futuro possa mais alguma coisa ganhar. Meu principal e único objetivo sempre foi lutar comigo mesmo pra nunca precisar de ninguém, poder sozinho me virar e se fosse o caso a própria fome e sede enfrentar. Mas depender de alguém era como uma forma de submissão, de servidão. Do mesmo jeito admitir abandonar a mim mesmo em troca de falsos sorrisos, e abraços em troca de vinho e pão, é demasiada escravidão.

Em volta o que eu enxergava era o Johnnes estudando para ser doutor, e o Fichnter trabalhando todos os dias com seu pai, para na cidade um dia ser conhecido como dono do maior armazém. Amélia se pintava e saía à janela, sempre a espreita. Ela queria ser a maior dama da região, casada com o mais rico e bem dotado do lugar. Afinal... o que podem os outros pensar? Johnnes, amigo de infância, já ao fim da adolescência me dizia: "antes eu era apenas alguém que andava maltrapilho por aí, mas hoje as pessoas me dão importância, não sou mais o mesmo, hoje sou quase médico, e posso levantar a cabeça por orgulho de como eu me constituí". Estranhamente eu me sentia humilhado por toda essa representação. Que me respeitassem pelo que sou, não pelo que finjo ser! Johnnes acreditava ter se tornado outra pessoa, mas no momento que viveu para provar aos outros que podia ser alguém, abandonou o que era pra não ser ninguém. Carcaça oca não tem cheiro.

Algum ódio me afastava de todas as representações sociais. As pessoas estavam tão encarnadas naquilo, de viver pelo próprio teatro de representar a todos os outros o que deles podem pensar, que deixavam de ser entes reais. Apenas fantoches controlados por um vazio contaminado de medo e solidão. Mas apesar disso sentia uma certa tristeza, pois ainda que acreditasse que podia manter-me em constante solipsismo e agarrar minhas forças no mais íntimo do meu ser, sentia falta de consentimentos sinceros e conselhos espertos. Tão afastado que estava que então resolvi: Vou ao mar, buscar o que eu sempre quis!

Foi então que virei marinheiro. Mas não! Sem nenhuma pretensão de ser o capitão, nem de ser o mais corajoso, o melhor pescador ou o maior desbravador. Nenhum lugar me pertencia, mas uma brisa no âmago do meu ser me movia, mas não podia entender porque.

Até que um dia, durante uma cerimônia numa cidade distante, por conta dos negócios entre os pimenteiros, um sentimento estranho me ocorreu. Bebia com as autoridades do feudo da pimenta, junto com meu capitão e meus colegas do navio. E então aparece! aquela brisa misteriosa que havia dentro de mim aparece! Seus olhos brilhavam um doce lacrimejar, mas seu sorriso não deixava da sua alegria duvidar. Era como se tudo tivesse invertido, e eu agora nada podia pensar, nem sentir, nem imaginar. Eu virava vento puro, ao me diluir nela. Seu nome era Neurisá di le Monsuet.

Tivemos o prazer de conversar e durante uma dança constatei que aqueles olhos eram meus. Ela era dama de dotes burgueses, e seu status na região era o da moça mais linda da família mais poderosa da região da pimenta. Como eu estava bem vestido, ela mesma deduziu que pudesse ser alguém de status semelhante, com costumes semelhantes, e que já nos amando, seria fácil conviver e se entender.

Por alguns anos visitava a dama le Monsuet sempre que podia, pois seguido eu ia a negócios à região da pimenta. A pimenta estava então vendendo bem, e todos que podiam na Irlanda compravam esta que era considerada a melhor pimenta do mundo. Até que um dia Monsuet, já com uma imagem formada de mim (que ela mesmo montou, com o quase-pouco que lhe contei) me pressionou: e o casamento, e nos juntar e viver felizes? Quero conhecer os seus pais, e você já faz negócio com os meus, só precisamos contar. Foi aí que eu decidi então contar o que eu era: eterno lobo perdido numa rede de fingimentos. Tal qual os outros, eu pensava que ela também era apenas mais uma atriz. As mulheres são más, os homens são maus. Mulheres nos fazem sofrer por amor, e os homens por poder. Que eu não podia fazer parte de todo o teatro, e assim, meu destino era até o fim ficar sozinho.

Acordei então deste hiato no tempo, e me apaga rápido a lembrança, com o resquício de vertigem batendo no meu peito. Me levanto, e logo vou carregando a mercadoria. Pra sempre um lobo do mar...

Menti um dia que nunca ia amar ninguém, porque nunca me abandonaria para virar um boneco teatral. Mas neguei a minha brisa mais íntima, a essência mais pura que segue sempre além do tempo, e no momento que o fiz, esqueci de mim, e virei mais um personagem no teatro da tensa vida de fingimento.

Dizer que não se ama ninguém é tão imenso que amar eternamente em silêncio. Mas é impossível deixar de contemplar dentro de si mesmo aquela eterna brisa, que mesmo viva, no real se torna impossível de aparecer e acontecer. Tento me conformar, e ser lúcido na aparência e lúdico no pensar. Viver é se esquecer. Amar é ser. Morrer por isso vale tanto quanto viver tentando dizer o que só pode ser silêncio. Arder é o pressuposto de ser feliz.


Levei todas as caixas para o depósito, apertei a mão do capitão, e depois de meses voltei para casa, com apenas uma certeza: Há Mar!

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O sapato

O sapato


Somente mais um sapato
em meio a todas as roupas
um sapato novo ainda
e que nunca vestiu um pé

Ficava ali esperando
perdido entre meias e trapos
e nele faltavam pedaços de nada
e ainda assim alguma coisa lhe falta

Uma opaca cor cintilante
chama a atenção pela discrição
devagar em movimentos parados
rápido na locomoção que o leva a lugar nenhum

O vento passa e não toca seus cadarços
a água passa e não molha seu solado
apenas silêncio e solidão
pois não percebe sons, nem companhias

Afinal, ele é apenas um sapato
Mas um sapato sem par...

O Mar

Sentindo muito por nunca estar ali
perdido sem musa de inspiração
guardado pela solidão
mantido guardado, sem brilho

Ela não está aqui, está com outra companhia
e a minha companhia, sempre a mesma
solidão, e ela na minha cabeça!

Na cabeça, dois tiros, sem sangue
um por saber, que nunca tive
outro, por nunca ter

o semblante vezes alegre que levo comigo
esconde a dor que estoura por dentro
bomba, estrela e mar
dentro, fora, e eu dentro do que está por fora

pensando, sem mais conseguir respirar
deixando ser levado, sem estar desesperado
chegando o que sempre foi esperado
afogado, afogado, afogado!

Teatro Vivo

Teatro Vivo

O palco está montado
e os atores amontoados
aos montes de botas desbotadas
enquanto os desbotados desabotoam apé
as lonas do espetáculo marcado

As cenas iluminam os tempos
para ver de perto em segredo
o falso riso do biscateiro
e a vil nuance da madame dos cervejeiros

E o que dizer de um romance em brigadeiro
Tímidos brigadeiros brigam pelos pedaços dos cervejeiros
e sorriem a todo instante uma nova peça do chiqueiro:
Porcos levando porquinhas por dinheiro
por automóvel garageiro

Mas nas ruas se entrelaçam os espelhos
e no escuro já se sabe o que se vê
a mesma cena ameaça um destino
de reflexos tingidos, do plástico ao carnaval
é tudo sempre igual

E quem assiste o dia inteiro, sempre dorme mal
é chamado a participar do mesmo jogo
a mesma cena
no teatro vivo do celeiro universal
asfalto, cimento, telhado e tecido
Volvem o volvir de se estar perdido

Preso entre pedras e moscas
que voam ligeiro pelos estrumes
perdendo os pedrendos que se mascam
pelas moscas em torno do lixeiro

E então, se atira na bosta dizendo
falando... sobre o troféu da esquisitisse
que o normal é o que ele vê
no teatro marcado por bonecos espelhados
que se dizem bem malhados.

Mas na muralha do próprio corpo
Ninguém é nada.
O teatro vivo se anima
com uma boneca mascarada!

E o último palhaço sorri
no espaço eterno
do seu desaparecimento...


Poema de ser que não é mais

Poema de ser que não é mais

voltando no tempo, pra destruir e reconstruir...
As imagens foram todas pintadas com riscos que por acaso ali se raspavam
e de tantos acasos, tentar entender acaba sendo destruir, tentar juntar é separar, pois cada parte é uma coisa, e toda coisa são as partes, que em mim, desligadas entre si não são mais nada...

que apesar de tudo, tentando pegar cada pedacinho, esqueci do que tinha por inteiro
mas não podia vê-lo, pois quando ser-lo não pode parar, é sempre a eterna reconstrução dos riscos, que por acaso, raspam por aqui...

Se algum risco um dia pôde ser percebido
e pela sua delicada sutileza pôde ser apreciado como beleza
de tanto contemplar, maltrata a verdade
de que tudo isso vai se transformar.

um risco belo um outro feio vai sobrepor
sobrepondo tudo em mim, enquanto o tempo passa
e eu continuo parado, no mesmo lugar, tentando encontrar aqueles mesmos rabiscos leves e sinceros

tão sinceros que não existem mais...

Poesias inspiradas nos dias frios do meu quarto

O SONO


Um brinde à todos os refugiados
que fugindo dos próprios laços
dão nós nos próprios braços
se afogando em todos os copos

Livres para correr, beber ou morrer
mortos para viver tão perto de si
demasiado tarde para esquecer
mas ainda cedo para se perder

Enquanto luzes no escuro
tão longe, onde eu posso ver
o quanto valem os detalhes na escuridão

mesmo se emaranhando...
amarrado!esborrachado!
tecido em um frasco;
de solidão...

Ainda posso dormir.
e contemplar o silêncio
entre murmúrios
...de vazia sensação