sábado, 11 de outubro de 2008

A voz do síndico

Toca a campainha. Antônio estava em casa tirando seu dia de folga. Levanta-se da cadeira, usava pantufas e jeans velho. Abre a porta. Seus olhos visualizam luz e sombra, sua mente rapidamente faz a imagem tomar uma forma geométrica tridimensional. Sua imaginação delimita aonde um objeto termina e outro começa. Aplica então as categorias do entendimento a todas as suas percepções. A memória vai ao baú encontrar o nome que identifica o conceito. E tudo isso em poucos milisegundos.

Era o síndico.


-Olá rapaz... então hoje está de folga?

-Poisé...- mal Antônio acaba de responder o síndico se atravessa.

-Pois a vizinha havia me dito. Vim apenas lhe fazer algumas ressalvas. Sabe como é, não gosto muito disso, mas é meu trabalho, afinal sou síndico do universo...

- Sei...

-Pois então, hoje é terça-feira, e recém são nove e meia da manhã. Você tem seu dia de folga. Aproveite o almoço, pense em almoçar em algum restaurante. Enquanto isso você pode aproveitar para ir ao mercado ou à feira. Mas claro, almoce meio-dia. Mas não pense em aproveitar muito o dia. Não vá muito longe, depois terá que voltar para casa. Não faça nenhuma atividade pública durante o dia, afinal, hoje é terça-feira e todos estão trabalhando. Por isso é uma boa aproveitar o almoço em um restaurante. Lá é dos poucos lugares que você poderá gozar de seu ócio sem causar insulto a quem está trabalhando. À tarde também não vá muito longe. Se for para uma praça, vá apenas depois das dezoito horas, pois antes disto as praças devem estar desativadas para os não-cachorros e os não-mendigos. As pessoas trabalham. Então, aproveite a tarde para ficar em casa. Veja que coisa boa! Você tem o seu apartamento. Cada um deve admirar a sua cela, deixe bonitas todas as suas grades e aproveite todos os seus metros cúbicos. Contemple todo o nosso sedentarismo. Se sentir-se sozinho, compre um cachorro, mas deixe-o trancado em casa, saia com ele apenas ao fim da tarde, caso ele queira defecar em público. Afinal, estamos no asfalto e no cimento, e aonde há isto o dono é o homem.

E prosseguiu o síndico do universo:

-Ao fim da tarde você pode comprar uma pipoca e ver um filme. Mas não sinta-se bem: o seu dever é ficar preocupado, amanhã e todo o resto da sua vida você tem que trabalhar e apodrecer. Se pensar em sair, espere a noite. Desde que fabricamos lâmpadas que usamos apenas a noite para entretenimento social. Nunca aproveite o dia, pois é hora de trabalhar. Quando sair, beba álcool, assim você pode fingir no outro dia que só não sentia-se culpado (por não estar sentindo-se culpado) por causa da bebida. Fale qualquer coisa com qualquer pessoa. Aja como um imbecil, mas apenas depois da terceira cerveja.
-Ok...-responde Antônio
-Ah, só mais uma coisa. Não faça barulho depois das vinte e duas horas, nem chegue tarde, amanhã todos temos que trabalhar.

Vai embora o síndico. Depois disto, introspectivamente mas sem muita atenção, Antônio descobre que pode ao menos ultrapassar os limites do mundo sensível: seguindo a rígida coleira do seu imperativo categórico goza de autonomia e liberdade. Ele é sujeito de seu tempo. Século XXI. Senta-se na frente da TV, e aproveita seu dia de folga como um imbecil.