quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Madrugada

A doença, a sobriedade e a loucura
Andam de braços dados
Desesperadas
Gritando
“Vida, me tira daqui!”

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A transparência e o obstáculo

O corpo que escarra os restos das carnes mortais
Que procura na terra enlamaçada o alimento que lhe atrai,
O corpo da fera roçando na fêmea até arder
Que bufa raiva em salivas vertiginais

Se esconde, por cortinas humanizadas
Em uma terra de madeira envernizada.
Esconde a fera sua baba encarniçada
Com o seu veludo enfeitado, manifestação oculta do real.

E este bicho...virou aparência!
Cavou buracos para esconder
Os seus restos fecais.

Construiu barracas, para dormir babando
No engano do escuro.
E como é mais bonito no escuro!

Comprou janelas
E vidraças
Espelhos que suspendem para o céu
Sua raiz enraizante.

Escolhe as suas cores
E aparece fenomenal.

Um fantasma moldando o corpo
Em um bacanal
De panos coloridos recortados

E a fala
Atravessa a metamorfose
Do dentro para fora,
Acumulando a poeira da cortina

A sujeira do véu que vela
O animal,
Agora o selo marginal

Fincado às margens que lhe proíbem de se ver,
Dizendo tudo o que diz
Não tendo nada pra dizer.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Os habitantes do abismo

Eis que de repente surjo em um mundo que aos poucos se configurava: meus sentidos eram dados de antemão (e nenhum deles era sensível). Todo o mundo anterior àquele em que caí era linguagem. Mas junto com este mundo veio a percepção, nenhuma cor era extrema: todos meio tons, nenhum vermelho, no máximo um vermelho-escuro, meio vinho, um horizonte um tanto roseado, cor-salmão. O amarelo chegava ao seu auge no bege, e o azul era sempre azul. Um pouco era cor. O resto era cinza. Mas dos sentidos pré-estabelecidos poucos conseguiam se adequar às percepções. Eis que em uma rua, que era maior do que qualquer rua, um abismo, e neste abismo, habitantes. Os habitantes do abismo ouviam música ao se balançarem em balanços. Uma praça, com grama verde, cheia de balanços e bancos. Alguns perambulavam mudos, com o olhar mais que abstrato. Meu olhar finalmente frisa um que se balança como um adulto lúdico, cantando uma música que tocava no seu walkman. Os habitantes do abismo não pareciam pretender nenhuma comunicação entre si, nem se importavam uns com os outros: sequer sabiam que haviam outros ali. Seus ouvidos estavam fechados para a fala, e o diálogo só ocorria dentro de cada um: estavam presos ao seu mundo lúdico, ao sonho que podiam criar para si mesmos. Uns, carentes de si mesmos e sem criatividade para burlar a sua solidão, pareciam um tanto desanimados: mas era apenas uma estagnação total do movimento do seu desejo - estavam vivendo seu próprio nada. Os habitantes do abismo eram solitários enquanto estavam ali, todos juntos, surdos e mudos uns para os outros.

Segui adiante, caminhando por aquele lugar. quanto mais eu caminhava, mais arenoso o solo. O vento, porém, era leve, e nada era muito calor: a temperatura era como as cores, quase-cinza. Primeiro encontro um cachorro, o que me deixa um pouco nervoso, com medo. Olho para ele, que é completamente indiferente a mim. Ele segue e encontra outro cachorro: o primeiro encontro que presencio no mundo que acaba de me parir. Um cachorro encontra o outro, e em plena comunicação segue correndo, se jogando pela areia, brincando de se morder, um puxando o rabo do outro, correndo e voltando.

Eis que surge a figura enigmática, que marca o segundo encontro, onde pela primeira vez me entendo como parte daquele mundo: fui percebido por alguém. A presença dos cachorros revelava algo mais: ali havia alguém encarregado de cuidar do lugar, de cuidar dos cachorros, e os cachorros estavam ali como parte do "cuidamento" do lugar. O homem me olha de cima do barranco. Entendo que ele está ali por ordem de alguém, que deveria ser dono do lugar, e deixa-o ali, cuidando. Mas não havia dono no lugar: aquela figura era o cuidador do lugar que não era dele, nem de ninguém, e ainda assim ele mantinha-se marcado pela função de cuidar o lugar para alguém - alguém indeterminado, um inexistente, um vazio: uma figura que só existe pela relação que tem com o cuidador do lugar - sem alguém que representasse o dono, não haveria o empregado cuidador, e sem o cuidador, não haveriam os cachorros, e sem os cachorros, não haveria o banco de areia. Sigo adiante, estranhando, subo para o outro lado do barranco para fugir dos cachorros, e fico pensando em qual rua eu deveria entrar para sair na 7 de setembro...

terça-feira, 27 de abril de 2010

Findos tempos de liberdade

Tu, liberdade, és adolescente

Inflama a alma como uma virgem descarnada

Excita e enaltece, nos procura e se evanesce


Tua busca desenfreada que nunca nos acalma

Enxugamos as lágrimas e bradamos em tua fala.

Mas nada agora te enobrece

A juventude que se buscava libertada

Morre cedo logo que o sonho padece.


De realidade a tua ideia é abandonada.

Somos todos prisioneiros do mesmo destino:

crescemos para ver, para ler no mundo,

Num lençol branco com o discurso encardido.


E o limpamos, mas não te encontramos.


Liberdade, para qual nascemos, sonhamos e vivemos

Mas o que em ti não estava escrito

É que com o tempo nós crescemos

E isto significa te des-cobrir

Te afastar das cortinas idílicas


Para saber à carne crua

Que independente de como tu te desvincula

Somos crescidos dominados.