segunda-feira, 24 de maio de 2010

Os habitantes do abismo

Eis que de repente surjo em um mundo que aos poucos se configurava: meus sentidos eram dados de antemão (e nenhum deles era sensível). Todo o mundo anterior àquele em que caí era linguagem. Mas junto com este mundo veio a percepção, nenhuma cor era extrema: todos meio tons, nenhum vermelho, no máximo um vermelho-escuro, meio vinho, um horizonte um tanto roseado, cor-salmão. O amarelo chegava ao seu auge no bege, e o azul era sempre azul. Um pouco era cor. O resto era cinza. Mas dos sentidos pré-estabelecidos poucos conseguiam se adequar às percepções. Eis que em uma rua, que era maior do que qualquer rua, um abismo, e neste abismo, habitantes. Os habitantes do abismo ouviam música ao se balançarem em balanços. Uma praça, com grama verde, cheia de balanços e bancos. Alguns perambulavam mudos, com o olhar mais que abstrato. Meu olhar finalmente frisa um que se balança como um adulto lúdico, cantando uma música que tocava no seu walkman. Os habitantes do abismo não pareciam pretender nenhuma comunicação entre si, nem se importavam uns com os outros: sequer sabiam que haviam outros ali. Seus ouvidos estavam fechados para a fala, e o diálogo só ocorria dentro de cada um: estavam presos ao seu mundo lúdico, ao sonho que podiam criar para si mesmos. Uns, carentes de si mesmos e sem criatividade para burlar a sua solidão, pareciam um tanto desanimados: mas era apenas uma estagnação total do movimento do seu desejo - estavam vivendo seu próprio nada. Os habitantes do abismo eram solitários enquanto estavam ali, todos juntos, surdos e mudos uns para os outros.

Segui adiante, caminhando por aquele lugar. quanto mais eu caminhava, mais arenoso o solo. O vento, porém, era leve, e nada era muito calor: a temperatura era como as cores, quase-cinza. Primeiro encontro um cachorro, o que me deixa um pouco nervoso, com medo. Olho para ele, que é completamente indiferente a mim. Ele segue e encontra outro cachorro: o primeiro encontro que presencio no mundo que acaba de me parir. Um cachorro encontra o outro, e em plena comunicação segue correndo, se jogando pela areia, brincando de se morder, um puxando o rabo do outro, correndo e voltando.

Eis que surge a figura enigmática, que marca o segundo encontro, onde pela primeira vez me entendo como parte daquele mundo: fui percebido por alguém. A presença dos cachorros revelava algo mais: ali havia alguém encarregado de cuidar do lugar, de cuidar dos cachorros, e os cachorros estavam ali como parte do "cuidamento" do lugar. O homem me olha de cima do barranco. Entendo que ele está ali por ordem de alguém, que deveria ser dono do lugar, e deixa-o ali, cuidando. Mas não havia dono no lugar: aquela figura era o cuidador do lugar que não era dele, nem de ninguém, e ainda assim ele mantinha-se marcado pela função de cuidar o lugar para alguém - alguém indeterminado, um inexistente, um vazio: uma figura que só existe pela relação que tem com o cuidador do lugar - sem alguém que representasse o dono, não haveria o empregado cuidador, e sem o cuidador, não haveriam os cachorros, e sem os cachorros, não haveria o banco de areia. Sigo adiante, estranhando, subo para o outro lado do barranco para fugir dos cachorros, e fico pensando em qual rua eu deveria entrar para sair na 7 de setembro...

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