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quarta-feira, 4 de julho de 2018

A implosão de Eldorado no século XXI

Aqueles prédios grandes, sinal de um futuro que não veio, davam um ar sombrio à cidade de Eldorado. Entre os escombros do presente-passado e o presente dos futuros escombros, lia-se o artigo do arquiteto Cláudio Amorim, no jornal Panfleto de Eldorado:

"[...] a arquitetura não pode ser política. Não me refiro apenas à estética. Devemos acabar com a arquitetura socialista - não foi para isso que a arquitetura foi feita. A distribuição de renda gera o paternalismo na arquitetura, e não cabe ao governo determinar como serão os espaços e as moradias, muito menos a estrutura urbana na cidade. A intervenção gera anomalias e recessão nos investimentos da liberdade arquitetônica. Como se vê, as indicações políticas fizeram ruir os prédios do modelo falido, da Ottosbresch, passando pela Carneiro-Ferreira, à OAC. O tropologismo de Galeano Ventoso estragou Eladorado. Isso é o que acontece quando a arte apoia o comunismo. A arquitetura não é arte e não deve ter finalidades estéticas. A arquitetura não deve ter interferência política."

Paulo encontra um notebook no meio dos escombros, diante de um horizonte de prédios com fachadas luminosas e ostentosas - aqueles que ainda sobravam. O computador estava próximo, mas inalcançável, pois o fio que o ligava à tomada não podia mais ser puxado (vinha de longe para estar ali na sua frente, entre os escombros). O exato ponto em que se encontrava era um pouco além de onde Paulo podia ir - era um ponto impossível. Paulo queria enviar uma resposta à Amorim, lhe dizer que não há arquitetura que não seja política - toda escolha arquitetônica é uma escolha política. Gostaria de criticar o livre-arquitetismo de Amorim, ao mesmo tempo que pretendia denunciar a frieza estética e o descaso arquitetônico do programa "Sua Casa Meio Cinza". A cidade deveria ser pensada pelas pessoas e para as pessoas!

Diante de si, ao lado do computador, encontrava-se o próprio Cláudio Amorim, preparando um novo prédio que ocuparia o lugar dos escombros. Poderia dizer-lhe tudo que pretendia escrever, mas assim como o computador encontrava-se ao mesmo tempo próximo e em um ponto impossível, Amorim estava logo ali, ontologicamente incomunicável.

Ao fundo, tocava uma música que era uma mistura de "O estrangeiro" com "Beleza Pura", do cantor tropologista. Quando Paulo mira o horizonte, um dos grandes prédios é implodido, e assim um por um. Implode o horizonte. Percebe que a cidade será toda demolida, ao mesmo tempo que a presença de Amorim sinaliza uma nova construção. Paulo alcança neste momento o paradoxo do gozo irônico da destruição e a dissolução terrível de seu ser diante do medo do futuro.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Os habitantes do abismo

Eis que de repente surjo em um mundo que aos poucos se configurava: meus sentidos eram dados de antemão (e nenhum deles era sensível). Todo o mundo anterior àquele em que caí era linguagem. Mas junto com este mundo veio a percepção, nenhuma cor era extrema: todos meio tons, nenhum vermelho, no máximo um vermelho-escuro, meio vinho, um horizonte um tanto roseado, cor-salmão. O amarelo chegava ao seu auge no bege, e o azul era sempre azul. Um pouco era cor. O resto era cinza. Mas dos sentidos pré-estabelecidos poucos conseguiam se adequar às percepções. Eis que em uma rua, que era maior do que qualquer rua, um abismo, e neste abismo, habitantes. Os habitantes do abismo ouviam música ao se balançarem em balanços. Uma praça, com grama verde, cheia de balanços e bancos. Alguns perambulavam mudos, com o olhar mais que abstrato. Meu olhar finalmente frisa um que se balança como um adulto lúdico, cantando uma música que tocava no seu walkman. Os habitantes do abismo não pareciam pretender nenhuma comunicação entre si, nem se importavam uns com os outros: sequer sabiam que haviam outros ali. Seus ouvidos estavam fechados para a fala, e o diálogo só ocorria dentro de cada um: estavam presos ao seu mundo lúdico, ao sonho que podiam criar para si mesmos. Uns, carentes de si mesmos e sem criatividade para burlar a sua solidão, pareciam um tanto desanimados: mas era apenas uma estagnação total do movimento do seu desejo - estavam vivendo seu próprio nada. Os habitantes do abismo eram solitários enquanto estavam ali, todos juntos, surdos e mudos uns para os outros.

Segui adiante, caminhando por aquele lugar. quanto mais eu caminhava, mais arenoso o solo. O vento, porém, era leve, e nada era muito calor: a temperatura era como as cores, quase-cinza. Primeiro encontro um cachorro, o que me deixa um pouco nervoso, com medo. Olho para ele, que é completamente indiferente a mim. Ele segue e encontra outro cachorro: o primeiro encontro que presencio no mundo que acaba de me parir. Um cachorro encontra o outro, e em plena comunicação segue correndo, se jogando pela areia, brincando de se morder, um puxando o rabo do outro, correndo e voltando.

Eis que surge a figura enigmática, que marca o segundo encontro, onde pela primeira vez me entendo como parte daquele mundo: fui percebido por alguém. A presença dos cachorros revelava algo mais: ali havia alguém encarregado de cuidar do lugar, de cuidar dos cachorros, e os cachorros estavam ali como parte do "cuidamento" do lugar. O homem me olha de cima do barranco. Entendo que ele está ali por ordem de alguém, que deveria ser dono do lugar, e deixa-o ali, cuidando. Mas não havia dono no lugar: aquela figura era o cuidador do lugar que não era dele, nem de ninguém, e ainda assim ele mantinha-se marcado pela função de cuidar o lugar para alguém - alguém indeterminado, um inexistente, um vazio: uma figura que só existe pela relação que tem com o cuidador do lugar - sem alguém que representasse o dono, não haveria o empregado cuidador, e sem o cuidador, não haveriam os cachorros, e sem os cachorros, não haveria o banco de areia. Sigo adiante, estranhando, subo para o outro lado do barranco para fugir dos cachorros, e fico pensando em qual rua eu deveria entrar para sair na 7 de setembro...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O seu sérgio - da bergamota

Seu Sérgio e dona Matilde voltavam da mateada e encontro familiar do centro da cidade de Ponto Verde. A cidade era habitada por pouco mais de 15 mil pessoas, não existia nenhum prédio. No centro, uma praça, uma Igreja e, mais além, um Parque. Neste Parque haviam muitas árvores e plantas, flores e frutas. Ninguém tomava refrigerante ou cerveja: as laranjas do parque nunca permitiram. Tudo foi de graça. Eis que Seu Sérgio encontra um grande amigo seu, quase vizinho, morador do outro lado da cidade:

-Úte Sérgio, mé que temo?
-De sempre. E como vai tu e a Família Cardoso?
-Maravilha. Agora o que eu ando brabo é com essa política, todo mundo nos roubando Sérgio. As pessoa não sabe votá! Ninguém se manifesta, enquanto isso os político roba nosso dinheiro. To achando que a gente tá ficando pior que cachorro, temo virando animal!

Enquanto isto Seu Sérgio colhia uma bergamota em uma árvore do Parque. Descascou a bergamota enquanto o Sr Cardoso falava quase sem parar, exceto as pausas para escarro. Exalou o cheiro de bergamota pelo ar, Seu Sérgio comeu uns três gomos da fruta, e com a boca ainda suja, terminou o assunto:
-Mas que bom! virar animal? parece que estamos aonde deveríamos estar. O burro, o macaco, o cachorro, e a bergamoteira, todos eles não precisam de mais nada, já sabem tudo.
-Mas como assim tchê! Que pode saber um cachorro? - replica o Sr Cardoso.
-Respirar.

Dá a volta e segue caminhando com dona Matilde, enquanto esta olha para um pedaço qualquer do espaço, com olhar de quem já sabe tudo que precisa. Ela diz o que vai fazer de janta, enquanto Seu Sérgio pensa em comer e dormir.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Os comunitaristas

Rafanzo 001 estava de pé, postado na posição intermediária entre as leis da terra e as leis do mundo. As regras da sua comunidade lhe exigiam. Seu co-cidadão havia desrespeitado as leis estruturais do comunitarismo vigente. Todos sabiam qual lhe seria a pena: para aquele que faz mal uso do membro, a perda do mesmo. Agenor XH3 havia agarrado a mulher do próximo com ambos os braços, agora estava prestes a perder apenas um.

Agora o comandante geral da aldeia de Tembarí estava a postar-se para dar o veredicto. Porém toda comunidade já sabia. Todos aceitavam as regras, todos seguiam as leis, todos eram um. Nada havia fora da comunidade.

-Agenor será castigado com a perda do braço, que será feita, para manter a honra da comunidade e do ainda membro desta, através da espada. Aleatoriamente escolherei alguém para prestar este serviço.- disse o general

Pasmem. O escolhido foi Rafanzo. Agenor e Rafanzo eram amigos desde a infância. Brincavam juntos, aprenderam as leis e os bons costumes na mesma escola, quando um infringia a regra da comunidade, o outro lhe reprimia. Se algum dia faltassem com respeito a um membro da comunidade, apanhavam juntos, se arrependiam juntos. Porém o respeito pelo ambiente político e social era muito mais forte que sua relação particular e privada. Não havia amizade privada, eles apenas concebiam isto como conseqüência da vida em conjunto. Todos merecem o mesmo respeito, e a unidade da comunidade deve ser cumprida.

Ao ser chamado, Rafanzo prontamente pegou a espada. Postado, Agenor esperava com ansiedade o castigo. Estava prestes a purificar sua dignidade perante sua comunidade. A mulher com quem tinha se envolvido já haviam-lhe arrancado o útero. Antes da conclusão da cerimônia de purificação, não se olharam. Rafanzo em nenhum momento titubeou, não teve dúvida: aquilo era para ser feito.

...
O braço agora era parte independente do corpo de Agenor. Um pouco de sangue, logo tomaram-se os cuidados para estancar o sangue. Nenhum grito de dor, nenhuma risada ou comportamento desrespeitoso por parte do público, nenhum ódio. A comunidade estava novamente limpa, o arrependimento tomou conta das atitudes, o castigo foi realizado, o equilíbrio reconstituído.

No outro dia os amigos Rafanzo e Agenor combinam de sair juntos. Sentam sobre a mesa e pedem cerveja. Conversam sobre futebol, e como bom amigo, Rafanzo compreende a situação do seu amigo, sem um braço, e sempre lhe serve o copo de cerveja, com muita educação.

sábado, 2 de agosto de 2008

O seu Sérgio

Matilde cortava o tomate, a cebola e o pimentão. Ferviam na panela os aromas de caldo e molho. Enquanto cozinha, Matilde não pára um segundo de jogar sua ansiedade pela boca.

- Viste que o filho da Elvira se formou. Aquele menino sempre teve jeito de doutor. Já a Denise, filha da Claudete e do seu Perera, aquela tem jeito de modelo, mas é meio vagabunda. Mas quem diria, o menino guloso do Henrique, vai casar com a Fernanda!

Sérgio lia o mesmo jornal de todos os dias sentado na poltrona da sala. Com um pouco de irritação solta seus verbos pela primeira vez no dia.

-Matilde, eu já disse: todo mundo é poeta.

notícias literárias - 1

Antônio Junqueira Pires Peixoto. Um brasileiro comum.

Foi pego nú no ambiente de trabalho.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

O jogador indiano

As portas da 'taberna texana' estavam abertas. Tão abertas que as portas não eram mais portas, e a privacidade de seus freqüentadores era um espelho ampliado para fora. Vallahaba mostrava ao mundo: estava bebendo. Seu copo não era pouco cheio, aquela cerveja quente completava todos os espaços que podia em qualquer frasco, até que ele empinasse com toda empolgação o gole mais odisséico que a sua garganta já tinha presenciado. Seus sapatos ansiavam a sua vontade de mostrar que subiu. Subia em cima dos outros e ia além da sua cultura. O preconceito consigo mesmo fazia-o amar o que estava fazendo. Aquele momento é especial. Todo aquele deserto que era o invólucro daquele bar danado, para ele não era mais nada. Aquelas roupas, panos na cabeça, gente toda vestida, e um sol rachando. O solo é o chão seco, vermelho, nem formiga se agrada. Aquele monte de gente se amontoava. A pele queimada do sol, a cara que expressa o sofrimento não refletido, e um sorriso branco, com todo aquele monte de pelos nas sobrancelhas, que se uniam, faziam da simpatia o próprio corpo. Gente se ajoelhando pra todo lado, e um monte de merda de vaca enfeitavam todo aquele ambiente, que parecia o mausoléu do elefante mais venerado da Índia. Imaginem se aquele elefante tão concentrado no seu próprio voar com as pernas, pernas que se quer são partes de um elefante, iria pensar em varrer o pátio. Era assim que um indiano se projetava.

Um indiano que varria a calçada do Dr Dornelles, calçada esta sequer tinha calçamento. Seus pés descalços mostravam a sua posição fixa na sociedade indiana: pobre. Só lhe era permitido usar panos laranjas, e cor marrom claro nas épocas fúnebres. Nos dias escolhidos pelo líder espiritual dos pobres, eles deviam honrar seus deuses esfregando a língua no chão por uma tarde inteira, de cuecas e sandálias leves. Nos dias de honrarias era tradicional o chute ao pobre, e claro, Vallahaba ('pituca de rato', em indiano, mas que no misticismo significava 'luz verde do entardecer de Kohmou') tinha que se deitar de quatro e se submeter a diversos chutes no estômago. Era este o presente do seu Deus. Essa é a Índia não-hindu, que a televisão não mostra! Pobre Vallahaba.

Mas este momento era todo seu. Chegam seus amigos no bar. As cartas. Botas de cano baixo, e as camisas xadrezes, com exceto do sir Leonel Murray, que vestia uma camiseta com o retrato de um touro tão bravo que era quase um bode. As cartas foram dadas. Vallahaba agora suava. Escondia toda sua insegurança no copo de uísque. Um tapa por baixo da mesa e Murray bate jogo. As cartas dadas novamente. Vallahaba já tinha perdido metade do dinheiro que levara, e ainda tinha que pagar a conta do bar. Mais um jogo. Uma piscada de olhos, quatro cervejas e dois uísques. Dessa vez ele pensou que iria se dar bem. Mas aquela camiseta do touro dava sorte mesmo. Murray dá uma cusparada no chão de madeira podre, indicando que havia batido mais uma vez. Vallahaba perdera todo seu dinheiro. Na hora de pagar o bar, teve que pedir para pendurar. O dono do bar agradece sua presença ilustre, e anota na conta, descontando cinco cervejas.
- Isso é porque admiro muito o seu jogo.- Dizia o barman.

Vallahaba sai na rua. Um sorriso branco, sol escaldante refletindo um brilho cruzado no seu dente da frente. Cinco garotas passam por ele e mostram o rosto, com um sorriso tímido. Ele pára, dá quatro autógrafos. Como era bom ascender de posição social, e largar todos aqueles rituais. Pisava com tudo no que pensava que era o lixo da sua cultura, e assumia o máximo que podia sua situação ocidental. Um carro lhe esperava, e para dentro ele escolhe a tanga que quer levar. Sabia que iria despir uma indiana.

Nada como ser um jogador de futebol.

sábado, 14 de junho de 2008

Uma pequena estrela

Carlos queria ser famoso. Queria ser reconhecido não sabe pelo que. Queria a idolatria da televisão, das fotos,dos outdoors, queria ser o desejo adolescente, a inveja maldizente dos velhos rabugentos que reclamam da vulgaridade do tempo em que já estão mortos. Carlos fazia de tudo pra virar notícia. Ser famoso, conhecido. Mas nem sabe pelo que. Carlos mostrava a bunda, dizia palavrões em ocasiões inusitadas, fazia protestos, era simpático, revoltado, um forçado.

Passou na rua imaginando como seria sua entrevista em um programa de culinária. Todas as coisas que diria, o que ele comia, o que fazia, quem ele pegava. Atravessando a rua seu sonho se realiza.

No outro dia, numa capa de Jornal:

"Homem é atropelado por caminhão de lixo ao atravessar a Rua Das Oliveiras


Carlos Peixoto Andrade foi atropelado na noite de ontem pelo caminhão de lixo em um trecho mal iluminado da Rua das Oliveiras. Carlos bateu forte a cabeça e quebrou as duas pernas. Foi vivo para o hospital mas não resistiu(...)"

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Um breve conto...

O desabafo do mercantilista

Barulho agradável de chuva, e quando me acordo entendo que o barco está parado. Agora em terra, o que devo fazer é carregar todas as coisas que têm valor e vender pelo que não vale. Levantar, estender diante de mim mesmo, e com força carregar, falar, caminhar e em resumo, trabalhar. Mas ainda deitado num isolado quadrado do navio (junto com dois ratos que teimavam em me perseguir) não conseguia levantar do toco de madeira com lençol que usei como cama durante toda a viagem. Não que fosse pelo conforto da minha cama, nem pelo agradável do ambiente do meu próprio lugar no barco (eu era um dos únicos que tinha um 'quarto' em separado), pois os dois ratos voltavam para incomodar. Tampouco pelo cansaço, pois apesar que o barco tenha balançado mais que o comum esta noite, o ópio de ontem garantiu-me um bom sono. Era aquela própria chuva, a mais singela, que me congelava, não pelo frio, mas pela sua forte capacidade nostálgica.

Todo aquele marasmo não era esperado. Deveríamos chegar com sol, ver gente que vive em cima da terra, fazer negócios e ganhar abraços, apertos de mão, assinar contratos. Mas a chuva era um breve hiato no tempo. E são esses breves hiatos no tempo que me trazem a saudade, enclausurada em mim mesmo, de todos os hiatos que o tempo já teve.

Um hiato em mim que agora se desdobra em lembranças, e nem faz mais diferença aonde estou. Uma tristeza instantânea me arrebata e me pergunta como eu estou. Inevitável remontar o passado.

Lembrei de alguns pontos da minha infância, e de toda a saudade que sentia de poder pular sem medo algum de me quebrar, e me sentir tão livre mesmo sem nada a poder fazer. Mas como as coisas se transformam, o próprio sentimento puro dessa infância já morreu, sobram apenas resquícios na memória, e pra poderem sobreviver, eu preciso reconstruir. Lá vai a imaginação, e eu tentando pensar quem eu era, pra me sentir no que sou. Fatos não são tão fatos assim, e me recordo que o importante não tem origem nem fim.

Às vezes parece que lembrar é se perder no tempo, mas o que me remete ao tempo é justamente o que não se pode explicar, nem dizer. Não foi numa noite estrelada ou num dia de sol que o que me fere aconteceu. É a essência que precede a existência, e que num momento cria um vão, que desliga as duas, como se ser fosse se contemplar no que não-é em si, mas no que há em mim. Desde criança, lembro de já ter algo montado na mente, uma imagem que não se aparecia nem se escondia, que eu não podia ver mas sabia o que era. Por vezes, durante mesmo uma respiração, sentia sua falta, me perguntava se existia aquela essência que se escondia em mim. Não era eu. E isso eu sempre sabia, não era eu...

Na hora que a gente foge de tudo isso, e atinge essa conexão que há em si com esse mistério de uma brisa sem fim, ao mesmo tempo se exige a desconexão do que sou e do que me rodeia. As coisas mais abstratas mesmo, acabam sendo só aparência, a aparência sequer tem um lugar de realeza, e o que é real é que não se vê, não se toca, não se explica, não se entende, e que ainda tudo, o que eu não sou, mas sei que tenho.

Lutava sempre na adolescência pra tentar me auto-domar, um dono de si mesmo. Olhava em volta todas as pessoas se construindo a partir de obrigações sociais, fazendo justamente como a explicação que teriam que dar depois. Um azar na família me deixava sozinho e ao mesmo tempo, querendo fugir de qualquer companhia. A peste irlandesa matou papai e mamãe, e quando jovem só havia meu tio, que de tão bêbado, já mendigava e exigia de mim. Mas nunca pensei em trocar minha humanidade por uma profissão, nem mesmo de me transformar em um ator dos fingidos sorrisos da rua, dos abraços que se dão pela gratidão de esperar que num futuro possa mais alguma coisa ganhar. Meu principal e único objetivo sempre foi lutar comigo mesmo pra nunca precisar de ninguém, poder sozinho me virar e se fosse o caso a própria fome e sede enfrentar. Mas depender de alguém era como uma forma de submissão, de servidão. Do mesmo jeito admitir abandonar a mim mesmo em troca de falsos sorrisos, e abraços em troca de vinho e pão, é demasiada escravidão.

Em volta o que eu enxergava era o Johnnes estudando para ser doutor, e o Fichnter trabalhando todos os dias com seu pai, para na cidade um dia ser conhecido como dono do maior armazém. Amélia se pintava e saía à janela, sempre a espreita. Ela queria ser a maior dama da região, casada com o mais rico e bem dotado do lugar. Afinal... o que podem os outros pensar? Johnnes, amigo de infância, já ao fim da adolescência me dizia: "antes eu era apenas alguém que andava maltrapilho por aí, mas hoje as pessoas me dão importância, não sou mais o mesmo, hoje sou quase médico, e posso levantar a cabeça por orgulho de como eu me constituí". Estranhamente eu me sentia humilhado por toda essa representação. Que me respeitassem pelo que sou, não pelo que finjo ser! Johnnes acreditava ter se tornado outra pessoa, mas no momento que viveu para provar aos outros que podia ser alguém, abandonou o que era pra não ser ninguém. Carcaça oca não tem cheiro.

Algum ódio me afastava de todas as representações sociais. As pessoas estavam tão encarnadas naquilo, de viver pelo próprio teatro de representar a todos os outros o que deles podem pensar, que deixavam de ser entes reais. Apenas fantoches controlados por um vazio contaminado de medo e solidão. Mas apesar disso sentia uma certa tristeza, pois ainda que acreditasse que podia manter-me em constante solipsismo e agarrar minhas forças no mais íntimo do meu ser, sentia falta de consentimentos sinceros e conselhos espertos. Tão afastado que estava que então resolvi: Vou ao mar, buscar o que eu sempre quis!

Foi então que virei marinheiro. Mas não! Sem nenhuma pretensão de ser o capitão, nem de ser o mais corajoso, o melhor pescador ou o maior desbravador. Nenhum lugar me pertencia, mas uma brisa no âmago do meu ser me movia, mas não podia entender porque.

Até que um dia, durante uma cerimônia numa cidade distante, por conta dos negócios entre os pimenteiros, um sentimento estranho me ocorreu. Bebia com as autoridades do feudo da pimenta, junto com meu capitão e meus colegas do navio. E então aparece! aquela brisa misteriosa que havia dentro de mim aparece! Seus olhos brilhavam um doce lacrimejar, mas seu sorriso não deixava da sua alegria duvidar. Era como se tudo tivesse invertido, e eu agora nada podia pensar, nem sentir, nem imaginar. Eu virava vento puro, ao me diluir nela. Seu nome era Neurisá di le Monsuet.

Tivemos o prazer de conversar e durante uma dança constatei que aqueles olhos eram meus. Ela era dama de dotes burgueses, e seu status na região era o da moça mais linda da família mais poderosa da região da pimenta. Como eu estava bem vestido, ela mesma deduziu que pudesse ser alguém de status semelhante, com costumes semelhantes, e que já nos amando, seria fácil conviver e se entender.

Por alguns anos visitava a dama le Monsuet sempre que podia, pois seguido eu ia a negócios à região da pimenta. A pimenta estava então vendendo bem, e todos que podiam na Irlanda compravam esta que era considerada a melhor pimenta do mundo. Até que um dia Monsuet, já com uma imagem formada de mim (que ela mesmo montou, com o quase-pouco que lhe contei) me pressionou: e o casamento, e nos juntar e viver felizes? Quero conhecer os seus pais, e você já faz negócio com os meus, só precisamos contar. Foi aí que eu decidi então contar o que eu era: eterno lobo perdido numa rede de fingimentos. Tal qual os outros, eu pensava que ela também era apenas mais uma atriz. As mulheres são más, os homens são maus. Mulheres nos fazem sofrer por amor, e os homens por poder. Que eu não podia fazer parte de todo o teatro, e assim, meu destino era até o fim ficar sozinho.

Acordei então deste hiato no tempo, e me apaga rápido a lembrança, com o resquício de vertigem batendo no meu peito. Me levanto, e logo vou carregando a mercadoria. Pra sempre um lobo do mar...

Menti um dia que nunca ia amar ninguém, porque nunca me abandonaria para virar um boneco teatral. Mas neguei a minha brisa mais íntima, a essência mais pura que segue sempre além do tempo, e no momento que o fiz, esqueci de mim, e virei mais um personagem no teatro da tensa vida de fingimento.

Dizer que não se ama ninguém é tão imenso que amar eternamente em silêncio. Mas é impossível deixar de contemplar dentro de si mesmo aquela eterna brisa, que mesmo viva, no real se torna impossível de aparecer e acontecer. Tento me conformar, e ser lúcido na aparência e lúdico no pensar. Viver é se esquecer. Amar é ser. Morrer por isso vale tanto quanto viver tentando dizer o que só pode ser silêncio. Arder é o pressuposto de ser feliz.


Levei todas as caixas para o depósito, apertei a mão do capitão, e depois de meses voltei para casa, com apenas uma certeza: Há Mar!