O desabafo do mercantilista
Barulho agradável de chuva, e quando me acordo entendo que o barco está parado. Agora em terra, o que devo fazer é carregar todas as coisas que têm valor e vender pelo que não vale. Levantar, estender diante de mim mesmo, e com força carregar, falar, caminhar e em resumo, trabalhar. Mas ainda deitado num isolado quadrado do navio (junto com dois ratos que teimavam em me perseguir) não conseguia levantar do toco de madeira com lençol que usei como cama durante toda a viagem. Não que fosse pelo conforto da minha cama, nem pelo agradável do ambiente do meu próprio lugar no barco (eu era um dos únicos que tinha um 'quarto' em separado), pois os dois ratos voltavam para incomodar. Tampouco pelo cansaço, pois apesar que o barco tenha balançado mais que o comum esta noite, o ópio de ontem garantiu-me um bom sono. Era aquela própria chuva, a mais singela, que me congelava, não pelo frio, mas pela sua forte capacidade nostálgica.
Todo aquele marasmo não era esperado. Deveríamos chegar com sol, ver gente que vive em cima da terra, fazer negócios e ganhar abraços, apertos de mão, assinar contratos. Mas a chuva era um breve hiato no tempo. E são esses breves hiatos no tempo que me trazem a saudade, enclausurada em mim mesmo, de todos os hiatos que o tempo já teve.
Um hiato em mim que agora se desdobra em lembranças, e nem faz mais diferença aonde estou. Uma tristeza instantânea me arrebata e me pergunta como eu estou. Inevitável remontar o passado.
Lembrei de alguns pontos da minha infância, e de toda a saudade que sentia de poder pular sem medo algum de me quebrar, e me sentir tão livre mesmo sem nada a poder fazer. Mas como as coisas se transformam, o próprio sentimento puro dessa infância já morreu, sobram apenas resquícios na memória, e pra poderem sobreviver, eu preciso reconstruir. Lá vai a imaginação, e eu tentando pensar quem eu era, pra me sentir no que sou. Fatos não são tão fatos assim, e me recordo que o importante não tem origem nem fim.
Às vezes parece que lembrar é se perder no tempo, mas o que me remete ao tempo é justamente o que não se pode explicar, nem dizer. Não foi numa noite estrelada ou num dia de sol que o que me fere aconteceu. É a essência que precede a existência, e que num momento cria um vão, que desliga as duas, como se ser fosse se contemplar no que não-é em si, mas no que há em mim. Desde criança, lembro de já ter algo montado na mente, uma imagem que não se aparecia nem se escondia, que eu não podia ver mas sabia o que era. Por vezes, durante mesmo uma respiração, sentia sua falta, me perguntava se existia aquela essência que se escondia em mim. Não era eu. E isso eu sempre sabia, não era eu...
Na hora que a gente foge de tudo isso, e atinge essa conexão que há em si com esse mistério de uma brisa sem fim, ao mesmo tempo se exige a desconexão do que sou e do que me rodeia. As coisas mais abstratas mesmo, acabam sendo só aparência, a aparência sequer tem um lugar de realeza, e o que é real é que não se vê, não se toca, não se explica, não se entende, e que ainda tudo, o que eu não sou, mas sei que tenho.
Lutava sempre na adolescência pra tentar me auto-domar, um dono de si mesmo. Olhava em volta todas as pessoas se construindo a partir de obrigações sociais, fazendo justamente como a explicação que teriam que dar depois. Um azar na família me deixava sozinho e ao mesmo tempo, querendo fugir de qualquer companhia. A peste irlandesa matou papai e mamãe, e quando jovem só havia meu tio, que de tão bêbado, já mendigava e exigia de mim. Mas nunca pensei em trocar minha humanidade por uma profissão, nem mesmo de me transformar em um ator dos fingidos sorrisos da rua, dos abraços que se dão pela gratidão de esperar que num futuro possa mais alguma coisa ganhar. Meu principal e único objetivo sempre foi lutar comigo mesmo pra nunca precisar de ninguém, poder sozinho me virar e se fosse o caso a própria fome e sede enfrentar. Mas depender de alguém era como uma forma de submissão, de servidão. Do mesmo jeito admitir abandonar a mim mesmo em troca de falsos sorrisos, e abraços em troca de vinho e pão, é demasiada escravidão.
Em volta o que eu enxergava era o Johnnes estudando para ser doutor, e o Fichnter trabalhando todos os dias com seu pai, para na cidade um dia ser conhecido como dono do maior armazém. Amélia se pintava e saía à janela, sempre a espreita. Ela queria ser a maior dama da região, casada com o mais rico e bem dotado do lugar. Afinal... o que podem os outros pensar? Johnnes, amigo de infância, já ao fim da adolescência me dizia: "antes eu era apenas alguém que andava maltrapilho por aí, mas hoje as pessoas me dão importância, não sou mais o mesmo, hoje sou quase médico, e posso levantar a cabeça por orgulho de como eu me constituí". Estranhamente eu me sentia humilhado por toda essa representação. Que me respeitassem pelo que sou, não pelo que finjo ser! Johnnes acreditava ter se tornado outra pessoa, mas no momento que viveu para provar aos outros que podia ser alguém, abandonou o que era pra não ser ninguém. Carcaça oca não tem cheiro.
Algum ódio me afastava de todas as representações sociais. As pessoas estavam tão encarnadas naquilo, de viver pelo próprio teatro de representar a todos os outros o que deles podem pensar, que deixavam de ser entes reais. Apenas fantoches controlados por um vazio contaminado de medo e solidão. Mas apesar disso sentia uma certa tristeza, pois ainda que acreditasse que podia manter-me em constante solipsismo e agarrar minhas forças no mais íntimo do meu ser, sentia falta de consentimentos sinceros e conselhos espertos. Tão afastado que estava que então resolvi: Vou ao mar, buscar o que eu sempre quis!
Foi então que virei marinheiro. Mas não! Sem nenhuma pretensão de ser o capitão, nem de ser o mais corajoso, o melhor pescador ou o maior desbravador. Nenhum lugar me pertencia, mas uma brisa no âmago do meu ser me movia, mas não podia entender porque.
Até que um dia, durante uma cerimônia numa cidade distante, por conta dos negócios entre os pimenteiros, um sentimento estranho me ocorreu. Bebia com as autoridades do feudo da pimenta, junto com meu capitão e meus colegas do navio. E então aparece! aquela brisa misteriosa que havia dentro de mim aparece! Seus olhos brilhavam um doce lacrimejar, mas seu sorriso não deixava da sua alegria duvidar. Era como se tudo tivesse invertido, e eu agora nada podia pensar, nem sentir, nem imaginar. Eu virava vento puro, ao me diluir nela. Seu nome era Neurisá di le Monsuet.
Tivemos o prazer de conversar e durante uma dança constatei que aqueles olhos eram meus. Ela era dama de dotes burgueses, e seu status na região era o da moça mais linda da família mais poderosa da região da pimenta. Como eu estava bem vestido, ela mesma deduziu que pudesse ser alguém de status semelhante, com costumes semelhantes, e que já nos amando, seria fácil conviver e se entender.
Por alguns anos visitava a dama le Monsuet sempre que podia, pois seguido eu ia a negócios à região da pimenta. A pimenta estava então vendendo bem, e todos que podiam na Irlanda compravam esta que era considerada a melhor pimenta do mundo. Até que um dia Monsuet, já com uma imagem formada de mim (que ela mesmo montou, com o quase-pouco que lhe contei) me pressionou: e o casamento, e nos juntar e viver felizes? Quero conhecer os seus pais, e você já faz negócio com os meus, só precisamos contar. Foi aí que eu decidi então contar o que eu era: eterno lobo perdido numa rede de fingimentos. Tal qual os outros, eu pensava que ela também era apenas mais uma atriz. As mulheres são más, os homens são maus. Mulheres nos fazem sofrer por amor, e os homens por poder. Que eu não podia fazer parte de todo o teatro, e assim, meu destino era até o fim ficar sozinho.
Acordei então deste hiato no tempo, e me apaga rápido a lembrança, com o resquício de vertigem batendo no meu peito. Me levanto, e logo vou carregando a mercadoria. Pra sempre um lobo do mar...
Menti um dia que nunca ia amar ninguém, porque nunca me abandonaria para virar um boneco teatral. Mas neguei a minha brisa mais íntima, a essência mais pura que segue sempre além do tempo, e no momento que o fiz, esqueci de mim, e virei mais um personagem no teatro da tensa vida de fingimento.
Dizer que não se ama ninguém é tão imenso que amar eternamente em silêncio. Mas é impossível deixar de contemplar dentro de si mesmo aquela eterna brisa, que mesmo viva, no real se torna impossível de aparecer e acontecer. Tento me conformar, e ser lúcido na aparência e lúdico no pensar. Viver é se esquecer. Amar é ser. Morrer por isso vale tanto quanto viver tentando dizer o que só pode ser silêncio. Arder é o pressuposto de ser feliz.
Levei todas as caixas para o depósito, apertei a mão do capitão, e depois de meses voltei para casa, com apenas uma certeza: Há Mar!
Todo aquele marasmo não era esperado. Deveríamos chegar com sol, ver gente que vive em cima da terra, fazer negócios e ganhar abraços, apertos de mão, assinar contratos. Mas a chuva era um breve hiato no tempo. E são esses breves hiatos no tempo que me trazem a saudade, enclausurada em mim mesmo, de todos os hiatos que o tempo já teve.
Um hiato em mim que agora se desdobra em lembranças, e nem faz mais diferença aonde estou. Uma tristeza instantânea me arrebata e me pergunta como eu estou. Inevitável remontar o passado.
Lembrei de alguns pontos da minha infância, e de toda a saudade que sentia de poder pular sem medo algum de me quebrar, e me sentir tão livre mesmo sem nada a poder fazer. Mas como as coisas se transformam, o próprio sentimento puro dessa infância já morreu, sobram apenas resquícios na memória, e pra poderem sobreviver, eu preciso reconstruir. Lá vai a imaginação, e eu tentando pensar quem eu era, pra me sentir no que sou. Fatos não são tão fatos assim, e me recordo que o importante não tem origem nem fim.
Às vezes parece que lembrar é se perder no tempo, mas o que me remete ao tempo é justamente o que não se pode explicar, nem dizer. Não foi numa noite estrelada ou num dia de sol que o que me fere aconteceu. É a essência que precede a existência, e que num momento cria um vão, que desliga as duas, como se ser fosse se contemplar no que não-é em si, mas no que há em mim. Desde criança, lembro de já ter algo montado na mente, uma imagem que não se aparecia nem se escondia, que eu não podia ver mas sabia o que era. Por vezes, durante mesmo uma respiração, sentia sua falta, me perguntava se existia aquela essência que se escondia em mim. Não era eu. E isso eu sempre sabia, não era eu...
Na hora que a gente foge de tudo isso, e atinge essa conexão que há em si com esse mistério de uma brisa sem fim, ao mesmo tempo se exige a desconexão do que sou e do que me rodeia. As coisas mais abstratas mesmo, acabam sendo só aparência, a aparência sequer tem um lugar de realeza, e o que é real é que não se vê, não se toca, não se explica, não se entende, e que ainda tudo, o que eu não sou, mas sei que tenho.
Lutava sempre na adolescência pra tentar me auto-domar, um dono de si mesmo. Olhava em volta todas as pessoas se construindo a partir de obrigações sociais, fazendo justamente como a explicação que teriam que dar depois. Um azar na família me deixava sozinho e ao mesmo tempo, querendo fugir de qualquer companhia. A peste irlandesa matou papai e mamãe, e quando jovem só havia meu tio, que de tão bêbado, já mendigava e exigia de mim. Mas nunca pensei em trocar minha humanidade por uma profissão, nem mesmo de me transformar em um ator dos fingidos sorrisos da rua, dos abraços que se dão pela gratidão de esperar que num futuro possa mais alguma coisa ganhar. Meu principal e único objetivo sempre foi lutar comigo mesmo pra nunca precisar de ninguém, poder sozinho me virar e se fosse o caso a própria fome e sede enfrentar. Mas depender de alguém era como uma forma de submissão, de servidão. Do mesmo jeito admitir abandonar a mim mesmo em troca de falsos sorrisos, e abraços em troca de vinho e pão, é demasiada escravidão.
Em volta o que eu enxergava era o Johnnes estudando para ser doutor, e o Fichnter trabalhando todos os dias com seu pai, para na cidade um dia ser conhecido como dono do maior armazém. Amélia se pintava e saía à janela, sempre a espreita. Ela queria ser a maior dama da região, casada com o mais rico e bem dotado do lugar. Afinal... o que podem os outros pensar? Johnnes, amigo de infância, já ao fim da adolescência me dizia: "antes eu era apenas alguém que andava maltrapilho por aí, mas hoje as pessoas me dão importância, não sou mais o mesmo, hoje sou quase médico, e posso levantar a cabeça por orgulho de como eu me constituí". Estranhamente eu me sentia humilhado por toda essa representação. Que me respeitassem pelo que sou, não pelo que finjo ser! Johnnes acreditava ter se tornado outra pessoa, mas no momento que viveu para provar aos outros que podia ser alguém, abandonou o que era pra não ser ninguém. Carcaça oca não tem cheiro.
Algum ódio me afastava de todas as representações sociais. As pessoas estavam tão encarnadas naquilo, de viver pelo próprio teatro de representar a todos os outros o que deles podem pensar, que deixavam de ser entes reais. Apenas fantoches controlados por um vazio contaminado de medo e solidão. Mas apesar disso sentia uma certa tristeza, pois ainda que acreditasse que podia manter-me em constante solipsismo e agarrar minhas forças no mais íntimo do meu ser, sentia falta de consentimentos sinceros e conselhos espertos. Tão afastado que estava que então resolvi: Vou ao mar, buscar o que eu sempre quis!
Foi então que virei marinheiro. Mas não! Sem nenhuma pretensão de ser o capitão, nem de ser o mais corajoso, o melhor pescador ou o maior desbravador. Nenhum lugar me pertencia, mas uma brisa no âmago do meu ser me movia, mas não podia entender porque.
Até que um dia, durante uma cerimônia numa cidade distante, por conta dos negócios entre os pimenteiros, um sentimento estranho me ocorreu. Bebia com as autoridades do feudo da pimenta, junto com meu capitão e meus colegas do navio. E então aparece! aquela brisa misteriosa que havia dentro de mim aparece! Seus olhos brilhavam um doce lacrimejar, mas seu sorriso não deixava da sua alegria duvidar. Era como se tudo tivesse invertido, e eu agora nada podia pensar, nem sentir, nem imaginar. Eu virava vento puro, ao me diluir nela. Seu nome era Neurisá di le Monsuet.
Tivemos o prazer de conversar e durante uma dança constatei que aqueles olhos eram meus. Ela era dama de dotes burgueses, e seu status na região era o da moça mais linda da família mais poderosa da região da pimenta. Como eu estava bem vestido, ela mesma deduziu que pudesse ser alguém de status semelhante, com costumes semelhantes, e que já nos amando, seria fácil conviver e se entender.
Por alguns anos visitava a dama le Monsuet sempre que podia, pois seguido eu ia a negócios à região da pimenta. A pimenta estava então vendendo bem, e todos que podiam na Irlanda compravam esta que era considerada a melhor pimenta do mundo. Até que um dia Monsuet, já com uma imagem formada de mim (que ela mesmo montou, com o quase-pouco que lhe contei) me pressionou: e o casamento, e nos juntar e viver felizes? Quero conhecer os seus pais, e você já faz negócio com os meus, só precisamos contar. Foi aí que eu decidi então contar o que eu era: eterno lobo perdido numa rede de fingimentos. Tal qual os outros, eu pensava que ela também era apenas mais uma atriz. As mulheres são más, os homens são maus. Mulheres nos fazem sofrer por amor, e os homens por poder. Que eu não podia fazer parte de todo o teatro, e assim, meu destino era até o fim ficar sozinho.
Acordei então deste hiato no tempo, e me apaga rápido a lembrança, com o resquício de vertigem batendo no meu peito. Me levanto, e logo vou carregando a mercadoria. Pra sempre um lobo do mar...
Menti um dia que nunca ia amar ninguém, porque nunca me abandonaria para virar um boneco teatral. Mas neguei a minha brisa mais íntima, a essência mais pura que segue sempre além do tempo, e no momento que o fiz, esqueci de mim, e virei mais um personagem no teatro da tensa vida de fingimento.
Dizer que não se ama ninguém é tão imenso que amar eternamente em silêncio. Mas é impossível deixar de contemplar dentro de si mesmo aquela eterna brisa, que mesmo viva, no real se torna impossível de aparecer e acontecer. Tento me conformar, e ser lúcido na aparência e lúdico no pensar. Viver é se esquecer. Amar é ser. Morrer por isso vale tanto quanto viver tentando dizer o que só pode ser silêncio. Arder é o pressuposto de ser feliz.
Levei todas as caixas para o depósito, apertei a mão do capitão, e depois de meses voltei para casa, com apenas uma certeza: Há Mar!
2 comentários:
é para falar como amiga ou como pessoa aleatória, não é porque ambas tem a mesma opinião...
bom, muito bom...
Sensacional, adriano. Tuas memórias são melhores que tuas atitudes (desculpa, não resisti). Belo texto!
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